quinta-feira, 23 de maio de 2013

A garota que não criava expectativas



Júlia, desde pequena, viu sua mãe levar tombos e se levantar. Física e psicologicamente, porque tá pra nascer mulher mais desastrada que essa. Viu-a chegar em casa com cara de nojo e bafo de bebida, não na boca, mas pelo corpo inteiro. Com um arranhão da bochecha e o rosto inchado de tanto chorar. Com um sorriso que foi substituído por um cinza que cobriu seu rosto alegre por dias. Viu-a atender telefonemas com ansiedade, para, subitamente, a curva de um sorriso se transformar em um cenho franzido. Viu-a ler e reler palavras de rejeição que mataram a esperança de uma vida melhor. Viu-a correr atrás e voltar com um sorriso amarelo no rosto, dizendo para a pequena Júlia de sardas e tranças loiras no cabelo, que não fora daquela vez. Não importava se a estrada fosse asfaltada ou de terra, de paralelepípedo ou esburacada, a mãe de Júlia voltava com algumas cicatrizes a mais e com as forças para seguir em frente diminuídas. Viu a mãe ferida, arrastando o peso de fracassos e seguindo em frente. 

Júlia não gostava de fracassos. E não gostava de se machucar, de ficar doente, usar gesso, tomar rémedio com gosto ruim e sentir o joelho arder quando entrava no banho. Ela, que não entendia nada muito além disso, decidiu que não precisava ficar doente ou ferida. Era só ver o que estava à frente: fracasso. Tudo o que estava à frente eram buracos, rachaduras e pedras que a fariam tropeçar. Quando ingressou na estrada, passou a olhar sempre pra baixo. Contornava os buracos, pulava as rachaduras e desviava das pedras. Viu seus amigos e parentes serem derrubados pelas mesmas coisas do qual ela fugiu. E se sentiu ótima. Ela estava lá, firme e forte, sem cicatrizes, sem más lembranças. Tudo de ruim que acontecia ela já esperava. Já tinha visto o obstáculo lá na frente. Quando ele chegava, ela simplesmente desviava dele e seguia em frente. Sem choro. Sem mágoas. Sem potes de sorvete consumidos numa tentativa frustrada de diminuir a decepção.

Nessa estrada, Júlia conheceu vários viajantes. Todos eles tinham marcas. Pequenas ou grandes cicatrizes de algo que não ocorreu como eles esperavam. E eles ficavam impressionados com a pele de Júlia, sem marcas, cicatrizes ou machucados. Alguém que nunca precisou se levantar pra aprender, porque nunca tinha caído. Mas eles não invejavam Júlia. Tinham pena dela. Pena de alguém que não precisou aprender suas próprias lições de vida; tinha aprendido tudo observando. Sabia todas as teorias, mas nunca as testara na prática. Não saberia como curar um ferimento quando ela caísse. E nunca tinha percebido que aquela pedra do qual era desviou era, na verdade, um diamante. Que aquele buraco que ela contornou tinha um baú do tesouro no fundo. Tinha passado tanto tempo antevendo seu fracasso que nunca tentou transformá-lo em sucesso. Simplesmente se conformou que nunca teria o que desejava, porque iria sempre cair. Tinha medo de cair e não conseguir se levantar. Ou de cair e não saber tratar da ferida. 

E lá no fim da estrada, Júlia caiu pela primeira vez. Não caiu porque terminou com o namorado, porque perdeu a promoção do trabalho ou porque não passou no vestibular. Essas coisas já tinham ficado pra trás, em buracos onde ela nunca caiu e onde nunca pôde ver os tesouros do fundo. Ela caiu ao ver que nunca tinha caído. Que os momentos passaram, as pessoas passaram, a vida passou, mas ela não conseguiu agarrá-la e fazer dela algo bom e certo. E, quando Júlia caiu, não conseguiu se levantar. Ela nunca tinha caído antes, não sabia como faria pra se curar. Não tinha mais ninguém para estender uma mão; todos tinham ficado pra trás. Tinham sido abandonados nos primeiros obstáculos, aqueles do qual ela fugiu.

Júlia nunca se levantou. Ela achou alguns tesouros, mas não tinha como aproveitá-los, já que não saía do buraco. Então, de novo, o mundo passou por Júlia sem que ela visse. Ela via lá de baixo, querendo voltar, querendo se levantar e cair mais mil vezes, para aprender como curar suas feridas. Mas era tarde demais. Júlia viveu num buraco durante toda a sua vida. Não só aquele no qual ela caiu no fim de tudo, mas ela sempre viveu numa caixa, num buraco que não a deixava olhar para os lados, olhar para o céu e ver que tinha muito mais do que obstáculos e coisas ruins na vida. Júlia era a menina sem cicatrizes, que viveu na escuridão. 

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